Números de Mersenne

Prof. Doherty Andrade – www.metodosnumericos.com.br

Ambiente de Teorema

Introdução

Os números primos sempre despertaram a curiosidade dos matemáticos. Um número natural $N$ é dito primo se os seus divisores positivos são apenas 1 e $N$. Ou seja, números inteiros que não se fatoram são chamados de primos. Acredita-se que Euclides tenha sido o primeiro a demonstrar que existem infinitos números primos, há cerca de 2300 anos, na Proposição 20 do Livro IX dos seus \emph{Os Elementos} há uma demonstração para esse resultado.

O argumento utilizado por Euclides é conhecido e admirado até hoje. A
argumentação é bastante simples e vamos repeti-la aqui. Ele considerou que se existissem apenas os números primos $2,3,5,\ldots,p$, onde $p$ seria o maior e último número primo, então o número $$N= (2\times 3 \times 5 \times \cdots \times p) +1$$ não seria primo. Note que $N>p$. Assim, sendo $N$ um número composto, $N$ teria que ser divisível por algum dos primos listados acima: $2,3,5,\ldots,p$. Mas $N$ não poderia ser divisível por 2, pois dividindo $N$ por 2 sobraria resto igual a 1. O mesmo ocorre com os outros primos: dividindo $N$ por qualquer outro primo, sobraria resto igual a 1. Assim, $N$ seria divisível apenas por 1 e por ele mesmo. Ou seja $N$ seria um número primo, o que é um absurdo, pois $N>p$ e o maior primo é $p$. Logo, existem infinitos números primos.

Ao longo do tempo, muitas fórmulas foram propostas para gerar números primos arbitrariamente grandes: Fermat, por exemplo, conjecturou que todo número da forma $2^{2^n} + 1$ fosse primo, coube a Euler provar que isso não é verdade: $(2^{2^5} + 1)$ é número inteiro composto, divisível por 641. A maioria dos matemáticos acredita que não exista uma tal fórmula, sendo este um problema ainda sem resposta.

Números especiais

Existem, entretanto, algumas fórmulas que geram famílias interessantes de
primos. A fórmula deste tipo que mais nos interessa aqui é $M_n = 2^n -1$, os chamados números de Mersenne. Quando $M_p$ é primo, dizemos que $M_p$ é um primo de Mersenne. Parte da razão pela qual números desta forma são interessantes é que apesar de $M_p$ nem sempre ser primo é relativamente fácil testar computacionalmente para um dado expoente $p$, mesmo bastante grande, se $M_p$ é primo ou composto. Por isso muitos dos números grandes primos conhecidos atualmente são primos de Mersenne.

Embora números da forma $M_n = 2^n -1$ já fossem conhecidos por Euclides, deve-se a Mersenne (1588-1648) sua popularização. Mersenne durante sua vida no mosteiro mantinha correspondência com todos os nomes importantes no domínio do conhecimento. Por meio de correspondências Mersenne transmitia notícias relativas a avanços científicos em troca de mais informações para divulgação. Deste modo, divulgando questões e solicitando contribuições, estimulou o desenvolvimento científico. Depois da sua morte, foram encontradas cartas de 78 correspondentes espalhados pela Europa, entre os quais Fermat na França, Huygens na Holanda, Pell e Hobbes na Inglaterra e Galileu e Torricelli na Itália, entre outros. Mersenne foi um grande interessado no conceito de divisibilidade, em correspondências com Fermat questionava-o sobre a possível fatoração de alguns números.

Muitos matemáticos antigos acreditavam que $2^p-1$ seria primo para qualquer $p$ primo considerado. Em 1536, Hudalrichus Regius apresentou a fatorização de $2^{11}-1=2047= 23 \times 89 $, demonstrando que a convicção era incorreta.

Um número de Mersenne $M_n$ só tem chance de ser primo, se $n$ for primo. De fato.

Proposição: Se $2^n – 1$ é primo, então $n$ é primo.

Prova: Se $n = ab$ com $a, b \geq 2$ então $1 < 2^a – 1 < 2^n – 1$ e $2^n – 1 =
2^{ab} – 1 = (2^a)^b – 1 \equiv 1^b – 1 = 0 \pmod {2^a – 1}$ e $2^n – 1$ é
composto.

Esse resultado simplifica a busca por números primos de Mersenne: basta
procurar por $M_p$ primo, considerando apenas $p$ primo. Mas isto não basta, pois pode ocorrer que $p$ seja primo, mas $M_p$ não, como já vimos. Mesmo assim, algumas questões relacionadas aos números primos de Mersenne ainda não foram respondidas. Veja uma delas:

Existem infinitos primos $p$ para os quais $M_p$ seja primo?

Não se sabe responder a essa pergunta, pois não sabemos demonstrar
matematicamente.

Conjectura-se, no entanto, que existam infinitos primos $p$ para os quais
tem-se que $M_p$ seja primo. Por isso há uma busca computacionalmente insana pelos números de Mersene que são primos. Você pode também participar da descoberta de novos números primos de Mersenne, basta aderir ao projeto GIMPS, \emph{Great Internet Mersenne Prime Search}, acesse \url{www.mersenne.org} e deixe seu computador executar um algoritmo para encontrar novos números primos de Mersenne.

Divulgado recentemente (03/Jan/2018) pelo projeto GIMPS a descoberta de mais um número primo de Mersenne. Chamado simplesmente de
$$M_{77232917}=2^{77232917}-1,$$ é o maior número primo de Mersenne
conhecido, ele tem mais de 23 milhões de dígitos, quase um milhão a mais de dígitos do que o recorde anteriormente alcançado em 2016.

Os números primos são úteis em criptografia, em que são utilizados na criação de senhas (chaves) para proteger dados confidenciais. Mas parte da razão pela qual os números desta forma são interessantes é que apesar de $M_p$ nem sempre ser primo é relativamente fácil testar para um dado expoente $p$, mesmo bastante grande, se $M_p$ é primo ou composto. Muitos dos números grandes primos conhecidos atualmente são primos de Mersenne.

O progresso comutacional trouxe a possibilidade, e a facilidade, de testarmos conjecturas no campo da teoria dos números. A busca por números primos cada vez maiores ou números primos de Mersenne cada vez maiores é só um exemplo nessa corrida. Sem esses números primos não seria possível efetuar compras seguras na internet. Atualmente, são usados números primos com algumas centenas de dígitos, mas à medida que os computadores forem se tornando mais rápidos, números primos maiores serão necessários. A corrida parece que não tem fim.

Essa corrida é altamente tecnológica e exige processadores cada vez mais
velozes e confiáveis. Nesta corrida, os primos gêmeos (um par de primos $p$ e $q$ cuja diferença entre eles é 2, por exemplo, 5 e 7, 17 e 19) estão
relacionados a um episódio importante na indústria dos computadores. Em 1993, o professor de matemática Thomas Nicely, tentando melhorar o cálculo da soma de Brun utilizando cinco computadores 486 e um Pentium, obteve resultados diferentes nas duas máquinas. O resultado obtido pelo computador 486 estava de acordo com os resultados já publicados. Mas os resultados obtidos com o Pentium não concordavam com os dados já publicados. Depois de várias verificações foi identificado o problema: o Pentium apresentava um erro $10^{10}$ vezes superior ao 486. O prof. Nicely comunicou o fato a Intel, fabricante do processador, que o ignorou. A notícia se espalhou pela internet e o bug foi confirmado por dezenas de pessoas até que a notícia chegou às TVs. Após a IBM anunciar que ia deixar de comercializar PCs com Pentium, a cotação das suas ações da Intel despencaram nas Bolsas de Valores. Algum tempo, a Intel lança no mercado o Pentium II e III sem bugs e reconquista a confiança do mercado.

\section{Números de Mersenne compostos}
E quanto aos números de Mersenne compostos, são infinitos? Euler, mostrou o seguinte teorema:

Teorema: Seja $k>1$. Se $p=4k+3$ é primo, então $2p+1$ é primo se, e
somente se, $2^p\equiv 1$mod$(2p+1)$.

Assim, se $p=4k+3$ e $2p+1$ são primos, então o número de Mersenne $2^p-1$ é composto. Logo, é razoável conjecturar que existem infinitos números de Mersenne compostos, pois existem infinitos pares primos $(p,2p+1)$.

Primos de Mersenne são interessantes também por causa de números perfeitos. Dado $n \in \mathbb{N}^*$, definimos $$\sigma(n) = \sum_{d\vert n} d,$$
a soma dos divisores (positivos) de $n$. Um inteiro positivo $n$ é dito
perfeito se $\sigma(n) = 2n$. Como exemplo, apresentamos os primeiros
números perfeitos: $6=1+2+3+6$, $28=1+2+4+7+14+28$, 496 e 8128.

A última proposição do nono livro dos Elementos de Euclides, sua mais famosa obra, Euclides não só define número perfeito, como enuncia e demonstra um método para calculá-los, método conhecido por “fórmula dos números perfeitos euclidianos”.

Proposição: Se $M_p$ é um primo de Mersenne, então $2^{p-1} M_p$ é um número perfeito.

Além disso, todo número perfeito par é da forma $2^{p-1} M_p$ para algum
primo $p$, sendo $M_p$ um primo de Mersenne.

Entre outros resultados da teoria dos números, Euler demonstrou o recíproco do teorema de Euclides: que todos os números perfeitos pares são da forma $ (2^{k-1}-1)(2^k-1)$.

Teorema 1: Se $n$ é um número perfeito par, então $n=
(2^{k-1}-1)(2^k-1)$, com $2^k -1$ número primo.

Conclusão:
Os números naturais, início e origem dos corpos numéricos, apesar de sua
simplicidade, escondem muitos mistérios: muitas perguntas permanecem ainda sem respostas. Vimos aqui uma pequena parte dos estudos avançados sobre a teoria dos números primos e suas aplicações: criar senhas invioláveis, testar processadores e arrebanhar uma legião de estudiosos para decifrar seus segredos. Aceita o convite?

Referências

[1] P. Ribenboim, The new book of prime number records,
3rd edition, Springer-Verlag, New York, NY, 1995.
pp. xxiv+541, ISBN 0-387-94457-5.

[2] Nielsen, Pace P., “Odd perfect numbers have at least nine distinct prime factors,” Math. Comp., 76:260 (2007) 2109–2126.

[3] McKee, Maggie (14 de maio de 2013). «First proof that infinitely
many prime numbers come in pairs». Nature. ISSN 0028-0836

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